domingo, 19 de março de 2017

Alimentos ultraprocessados: o perigo nas letras miúdas

Domingo, 19/03/2017, às 06:00,

A Operação Carne Fraca sacudiu o país na sexta-feira e levantou a questão: você sabe exatamente o que está comendo? Se já temos que conviver com pesticidas em legumes, frutas e verduras, imagine quando se trata de um alimento industrializado! Sabemos que é praticamente impossível decifrar o que está escrito em letras tão miúdas que exigem lupa e esta situação se agrava com a idade e com a existência de doenças crônicas – será que é seguro consumir o que está dentro do pacote? Felizmente já há muita gente se mobilizando para mudar esse quadro. Uma delas é a professora Isabel de Paula Antunes David, graduada em nutrição, doutora em fisiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal Fluminense. Atualmente, ela faz parte de um grupo de pesquisa que testa a eficácia de advertências de texto e de sistemas de rotulagens a serem incluídos na propaganda veiculada nos meios de comunicação e nos rótulos dispostos nas embalagens de alimentos ultraprocessados.

Afinal, o que são alimentos ultraprocessados e por que eles se distinguem dos demais?
Isabel David: Os alimentos ultraprocessados são formulações industriais contendo cinco ou mais ingredientes inteira ou majoritariamente constituídos por substâncias extraídas de alimentos (como açúcar, óleos, gorduras, proteínas e sal) ou derivadas de constituintes de alimentos (como gordura hidrogenada, amido modificado, hidrolisados proteicos, açúcar invertido, xarope de milho). Essas formulações ainda recebem aditivos como antioxidantes, corantes, estabilizantes, conservantes, realçadores de sabor e edulcorantes artificiais.  

Pode nos dar um exemplo dessa manipulação dos ingredientes?
Isabel David: Alguns produtos ultraprocessados são fáceis de serem identificados, como refrigerantes, balas, chocolates, pós com sabor de fruta para preparar refrescos e alguns tipos de biscoitos do tipo snack. O problema é que muitos dos aditivos são usados para simular atributos sensoriais de alimentos in natura, ou preparações culinárias artesanais. Alguns são mais difíceis de serem identificados, como sucos de fruta líquidos, sorvetes, bolos, pães, congelados pré-preparados prontos para aquecer (como tortas, pratos de massa, pizzas, salgados), produtos de carne reconstituída (como nuggets, salsicha, hambúrguer e outros), além dos “instantâneos”: macarrão, sopas e sobremesas. Por exemplo, os snacks de batatas podem conter compostos modificados de cereais como arroz e milho, aditivos (como aromatizantes, estabilizantes, corantes e conservantes), além de quantidades excessivas de gorduras e sal. Muitos sucos contêm baixa quantidade da fruta (quando contêm alguma), pouca fibra e alta quantidade de açúcar, além dos aditivos já mencionados.

Qual é a relação entre o consumo desses alimentos e o aumento de casos de obesidade e diabetes? Eles também podem estar associados à hipertensão e ao câncer?
Isabel David: Esses produtos contêm um alto valor calórico e baixo valor nutricional, com quantidade excessiva de açúcar, gordura saturada, gordura trans e sal. Já é consolidada a informação de que o consumo excessivo desses componentes está associado ao desenvolvimento de obesidade, cárie dental, doenças coronarianas, hipertensão e diabetes. A obesidade está ainda associada ao desenvolvimento de vários tipos de câncer.

Por que esse tipo de comida parece tão atraente se é tão artificial? O que a indústria faz para “fisgar” o consumidor?
Isabel David: São produtos hiperpalatáveis, com grande apelo sensorial. Mas esse apelo vem justamente da utilização de substâncias pouco saudáveis, como o glutamato monossódico, que realça o sabor, ou a frutose, um açúcar modificado que altera o nosso metabolismo. Faça suco de fruta em sua casa e veja se ele tem a cor intensa dos sucos artificiais. Ou veja se dá para fazer batatas fritas tão crocantes quanto as ultraprocessadas... Para culminar, são produtos práticos, baratos, duráveis e acompanhados de uma propaganda agressiva.

No caso dos idosos, o consumo dos alimentos processados traz algum risco extra à saúde?
Isabel David: O consumo excessivo de ultraprocessados pode agravar doenças preexistentes ou favorecer o surgimento de novas doenças.

Toda essa discussão nos leva à questão da rotulagem dos alimentos, que parece ser quase incompreensível de propósito. Para os mais velhos, inclusive, é praticamente ilegível. Que é a avaliação dos pesquisadores?
Isabel David: Uma vez que o consumidor não consegue facilmente identificar nesses produtos a quantidade excessiva de gordura, açúcar, sal e aditivos, os sistemas de rotulagem nutricional desempenham um papel informativo importante. O intuito é garantir o direito do consumidor de escolher o produto com base em informações nutricionais confiáveis. No Brasil, as informações nutricionais nas embalagens são até bastante completas em comparação a outros países, mas também são de difícil compreensão para a população em geral, em letras pequenas e dispostas na parte de trás da embalagem. Nosso grupo de pesquisa tem testado em laboratório a eficácia de sistemas de rotulagens propostos ou já utilizados em outros países, como o semáforo nutricional. Uma questão importante é que, independentemente do sistema de rotulagem, o ideal é dar preferência aos alimentos in natura ou minimamente processados.

O que é o semáforo nutricional, que já foi adotado em diversos países?
Isabel David: O sistema de rotulagem em forma de semáforo nutricional foi proposto inicialmente no Reino Unido, há cerca de dez anos, e utiliza diferentes cores como indicativo de valores elevados ou seguros de açúcar, sódio e gordura saturada como: verde (seguro), amarelo (atenção) e vermelho (elevado). É simples, inteligível ao consumidor e estudos têm demostrado que o semáforo nutricional aumenta consideravelmente a capacidade dos consumidores de avaliar a salubridade dos alimentos.

Como o Brasil se situa em relação aos demais países no que diz respeito ao uso de aditivos nos alimentos ultraprocessados? Quais são malefícios que essas substâncias trazem?
Isabel David: Apesar de a indústria utilizar somente aditivos alimentares que são permitidos legalmente, é discutível qual seria a quantidade e a frequência de consumo seguras a longo prazo, além do possível efeito da interação entre os vários aditivos consumidos. Por exemplo, estudos têm apontado o potencial carcinogênico de alguns aditivos, como os subprodutos do corante caramelo IV, presente em refrigerantes e biscoitos. O uso deste corante foi reduzido nos Estados Unidos e Canadá, mas, segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, aqui no Brasil a quantidade utilizada ainda é bastante superior que em outros países.

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