Na natureza, o olhar frequentemente denota ameaça ou confronto iminente. Entre cães e humanos, no entanto, o olhar compartilhado promove a liberação de ocitocina, hormônio que consolida o amor.
Especialistas descreveram as bases fisiológicas do olhar entre cães e humanos, medindo os níveis de ocitocina nos animais e em seus donos quando eram colocados num mesmo ambiente e estabeleciam contato visual. (foto: Tony Alter / Flickr / CC BY 2.0)
- Cada vez mais, observa-se que os donos dos cachorros tendem a atribuir a esses animais características humanas. Do ponto de vista comportamental, é verdade que os cães estabelecem com seus donos uma interface que envolve não só a linguagem falada (os cães conseguem compreender um vocabulário de cerca de 150-200 palavras) como também a linguagem corporal. Uma dessas manifestações é quando os cães encaram seus donos fixando o olhar diretamente nos olhos como um modo de transmitir emoções.
- Entre espécies do mundo animal, fitar nos olhos representa em geral uma ameaça, um sinal que costuma significar confronto iminente. Em abril, Miho Nagasawa e colaboradores, da Universidade Azabu, em Sagamihara (Japão), publicaram uminteressante trabalho na revista Science mostrando as bases fisiológicas do olhar entre cães e humanos.
- A equipe de Nagasawa mediu os níveis do hormônio ocitocina em cães e seus donos quando eram colocados num mesmo ambiente e estabeleciam contato visual. A ocitocina é um hormônio secretado pela neuro-hipófise e seu papel clássico é a ação na musculatura lisa do útero e das glândulas mamárias, produzindo, no primeiro, as contrações que auxiliam o trabalho de parto e, nas segundas, a liberação do leite durante a lactação. Além dessas funções, a ocitocina é hoje considerada um neurotransmissor que medeia o comportamento social, particularmente a formação dos fortes laços que se estabelecem entre a mãe e o(a) filho(a), assim como entre parceiros sexuais.
- Nagasawa e colaboradores mostraram que o olhar compartilhado entre os cães e seus donos promovia a liberação de ocitocina em ambos. Segundo os pesquisadores, esse comportamento, que teria coevoluído nas duas espécies, mimetiza a manifestação mais importante de ligação social entre mãe e filhos. Em outras palavras, além dos efeitos no útero e nas glândulas mamárias, a ocitocina é o hormônio que consolida o amor.
- O olhar entre cães e donos promove a liberação de ocitocina em ambos. O mesmo não acontece com lobos, ainda que tenham sido criados por tratadores desde filhotes
- Nagasawa e seu grupo mostraram que a ação da ocitocina ia além daquela já conhecida entre membros da mesma espécie. Este trabalho evidenciou também que os lobos, mesmo aqueles criados desde filhotes por tratadores, não exibiam o mesmo comportamento, isto é, raramente olhavam para os tratadores e não secretavam ocitocina quando colocados no mesmo recinto. A ausência de produção de ocitocina também foi verificada nos tratadores, o que confirma a natureza distinta da relação cão-humano.
- Os pesquisadores ainda mostraram que a administração de ocitocina aos cães aumentava a duração do olhar, mas curiosamente, nesse caso, o efeito do hormônio só era observável nas fêmeas. Em resumo, além de esclarecer a natureza química do amor/afinidade, a equipe de Nagasawa revelou que, pelo menos no que tange às emoções dependentes da ocitocina, o sistema nervoso central das fêmeas parece ser diferente do dos machos.
- Há outras evidências que indiquem isso? Sim. A possível diferença constitutiva entre machos e fêmeas foi o tema de outro trabalho publicado em maio na revista Nature Neuroscience, em que Bridget Nugent, da Universidade da Pennsylvania, e colaboradores mostraram que o cérebro de camundongos é naturalmente feminizado.
- O cérebro só se torna masculinizado quando, num indivíduo macho, genes do cromossomo Y induzem a produção de testosterona. Nessa situação, ocorre o bloqueio dos mecanismos que tornariam aquele cérebro feminino. Nugent descobriu que o mecanismo de bloqueio é a metilação em certas regiões do DNA. A metilação do DNA, um dispositivo frequentemente usado pela célula para reprimir genes, seria então a chave molecular que determina a fisiologia associada ao sexo.
- Resta saber se essa chave pode ser generalizada para outras espécies e se, como no caso das cadelas, determina o comportamento afetivo diferenciado.
- Este texto foi publicado na CH 326. Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista e ler outros artigos.
Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica,Universidade Federal do Rio de Janeiro
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